Justiça

O PL do aborto “é uma verdadeira cebola de maldades”, diz advogada

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Mulheres relatam “ciclo de violência e opressão” diante da possível aprovação do PL 1904/24  |   Bnews - Divulgação Divulgação/Hulu
Marco Dias

por Marco Dias

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Publicado em 19/06/2024, às 06h00



Imagine uma sociedade onde as mulheres não têm direitos. Elas são divididas em classes, cada qual com uma função muito específica no Estado. Em determinada categoria, o único objetivo é pertencer ao governo e existir unicamente para procriar. Vigiadas dia e noite, sem direitos mais básicos, seu destino ainda é “melhor” do que o das não-mulheres, como são chamadas aquelas que não podem ter filhos, as homossexuais, viúvas e feministas, condenadas pela sociedade. 

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A descrição acima retrata a obra “O Conto da Aia”, da escritora canadense Margaret Atwood, que se passa em um futuro distópico, em um estado teocrático e totalitário, onde as mulheres são anuladas pela opressão. Apesar de fictícia, a história traça um paralelo com a realidade brasileira, onde um projeto de lei prevê a equiparação entre as penas de aborto e homicídio. 

De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), e  e assinado por outros 31 parlamentares, o projeto de lei n. 1904/24, equipara penas por aborto após à vigésima segunda semana de gestação às penas previstas para casos de homicídio, mudando o atual entendimento da lei, mesmo em casos de estupro

Muito embora, aparentemente o projeto se dirija às mulheres - ou seja, aquelas maiores e em tese capazes de dar consentimento para a relação sexual, os exemplos citados para tentar justificar o PL são aqueles envolvendo crianças”, destaca Camila Guerreiro Britto, advogada e mestranda em Direito, Governança e Políticas Públicas. “Crianças cujo direito de interrupção da gravidez foi negado. Que espécie de moralidade pode ser defendida nesse caso? Como se justifica tanta crueldade?”, questiona a advogada. 

De acordo com o Código Penal, a pena prevista para o homicídio simples pode variar entre seis a vinte anos de prisão em regime fechado. Já nos casos de estupro, a pena gira em torno de 6 a 10 anos, podendo chegar a 12 anos se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14. 

Se fizermos uma comparação dessa proposta com o crime de infanticídio, onde há o nascimento da criança com vida e a mãe, por se encontrar em estado puerpera,l acaba matando o seu filho, a pena é de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Como que podemos equiparar a prática de aborto, onde não se tem o nascimento da criança com vida a um crime de homicídio, ainda que seja na modalidade simples?”, questiona Ítala Santa Rosa, advogada criminalista.

Para a jurista, o projeto de lei é omisso em reconhecer contextos sociais que atingem vítimas desde cedo, relacionados às questões de saúde pública. 

Observemos que a PL ignora o fato dessa gestação ser oriunda de uma violência sofrida pela vítima. Assim, de acordo a PL, a mulher/criança que muitas vezes tem o conhecimento tardio da gestação, pois algumas só tomam o conhecimento da gravidez quando se encontram em uma unidade de saúde básica, será obrigada a prosseguir com a gestação”, destaca a criminalista. 

Um olhar jurídico e estatístico sobre o tema 

No Brasil, uma mulher é vítima de estupro a cada 8 (oito) minutos, de acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, divulgado pelo Ministério das Mulheres este ano. 

Já o Atlas da Violência, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revela que, entre o primeiro semestre de 2019 e o primeiro semestre de 2023, houve um crescimento de 14,4% no número de vítimas de feminicídio. 

Divulgação/IPEA
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Há um grande perigo dessas violências sexuais não serem noticiadas por medo da criminalização da prática de aborto após a 22ª semana de gestação, bem como o medo de possíveis ameaças dos seus violentadores, tendo em vista que a pena prevista para quem comete o crime de estupro é menor do que a pena proposta para o crime de aborto sugerida pela citada PL”, reforça Santa Rosa. 

Ainda de acordo com o Atlas da Violência, apenas 8,5% dos estupros que ocorrem no Brasil são registrados pelas polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. 

Para Camila Guerreiro Britto, o projeto de lei representa uma verdadeira "cebola de maldades". 

Com a aprovação do projeto de lei 1904/24, o Estado, que falhou na proteção da criança, torna-se seu agressor direto, impondo-lhe uma gravidez que, em nenhum grau, pode ser consentida”, defende Britto. “São, então, três níveis de violência: 1) a sexual, da qual decorreu a gravidez; 2) a imposição legal da manutenção da gravidez; 3) a penalização, caso seja cometido o aborto”. 

Para a advogada, diante da postura estatal e das múltiplas violências cometidas com a mulher, ela deixa de contar com o Estado para manter direitos básicos, como integridade, saúde e dignidade. 

A alteração, assim, faz das normas programáticas da Constituição Federal de 1988 letra morta, tratando a violência sexual de crianças e mulheres caso de polícia, e não de saúde pública”, pontua Britto.

Violência de gênero e racial 

O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, divulgado pelo Ministério das Mulheres, também revela que, em 2022, 59,8% das vítimas de violência, incluindo a sexual, eram mulheres negras. 

Divulgação/IPEA
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Para Camila Ingrid, doutoranda e mestra em Desenvolvimento Regional e Urbano, o projeto de lei 1904/24 representa uma demonstração de que os corpos das mulheres pretas são “controlados, politizados e vulneráveis”. 

É impossível ignorar a histórica vulnerabilidade dos corpos femininos, especialmente dos corpos negros frente ao poder legislativo e às normas sociais patriarcais. Esse projeto, ele não só ignora a complexidade das circunstâncias que levam uma mulher a optar pelo aborto, mas também reforça um sistema opressor, que criminalzia nossas decisões sobre nossos corpos”, destaca Ingrid. 

Repercussão terapêutica 

Além das questões jurídicas apresentadas pelo projeto, questões de saúde, especialmente as que envolvem saúde mental envolvendo vítimas de estupro. 

Para a psicóloga Marília Rios, as consequências da violência sexual podem causar “rupturas profundas na vida da vítima”, que impactam diretamente no seu sistema familiar e social. 

As consequências psicológicas podem ser devastadoras e multivariadas: transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade, baixa autoestima, distúrbios dissociativos, dificuldades de relacionamentos e comportamentos de risco e de autolesão”, destaca Rios. 

Ela alerta, também, para a possibilidade de dúvida da vítima, que em meio a todo o sofrimento, pode se deparar com “uma decisão extremamente complexa e carregada de emoções” e que, em um momento inicial, a negação da gravidez pode ser um mecanismo de defesa, sendo necessário acompanhamento psicológico para compreender e lidar com o trauma. 

A psicoterapia propõe um espaço seguro e acolhedor onde possa expressar suas emoções, pensamentos e dúvidas sem julgamentos, onde explorar as diferentes opções, fortalecer a rede de apoio, trabalhar as sequelas do trauma e promover a ressignificação do evento traumático, reconstruindo sua história de vida e resgatando sua autoestima e autonomia”, pontua a psicóloga. 

Saúde Pública 

De acordo com o DataSus, 247.280 meninas de 10 a 14 anos foram mães no Brasil, entre 2012 e 2022. Ainda em 2022, o país registrou 180,5 mil internações por aborto em hospitais da rede pública e privada, sendo que o SUS recebeu 156,4 mil dessas pacientes. 

Com o projeto de lei, a gravidez será obrigatória após a vigésima segunda semana de gestação, reduzindo a análise para um critério objetivo. É citada, como exemplo, a “Cartilha de Atenção Humanizada às Meninas e Mulheres em Situação de Interrupção Legal da Gravidez em Santa Catarina”, descrevendo uma norma técnica do Ministério da Saúde, recomendando a interrupção da gravidez no prazo de até 22 semanas. A normativa foi aprovada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). 

Reprodução/PL 1904/24
Reprodução/PL 1904/24

Contudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgou em 2022, uma série de diretirzes desaconselhando leis e outras regulamentações que proíbam o aborto com base nos limites da idade gestacional.

Reprodução/OMS
Reprodução/OMS

Ítala Santa Rosa explica que, em diversos casos envolvendo vítimas de violência sexual, os indícios de uma gestação “passam despercebidos por essas crianças/adolescentes que, muitas vezes, não tem acesso à unidade de saúde básica”. 

Já para Camila Ingrid, “negar o acesso seguro ao aborto é condenar muitas de nós a procedimentos clandestinos e perigosos, exacerbando as desiguldades e perpetuando um ciclo de violência e opressão”. 

Enquete 

Reprodução
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Em meio à discussão do projeto de lei 1904/24, a Câmara dos Deputados abriu votação pública para ouvir a opinião da população diante da proposta. 88% dos votantes, um total de 956.152 pessoas, discordam totalmente do PL. Já 12% dos internautas, pouco mais de 119 mil pessoas, concordam totalmente com a mudança na lei. 

Classificação Indicativa: Livre

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